Série: -
Autor: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa
Data de Leitura: 11/07/2025 ⮞ 18/09/2025
Classificação: ⭐⭐⭐⭐⭐
Sinopse
«Reescrevendo, pois, as conhecidas cartas seiscentistas da freira portuguesa, Novas Cartas Portuguesas afirma-se como um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril (denunciando a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindo-se de uma invulgar originalidade e actualidade, do ponto de vista literário e social. Comprova-o o facto de poder ser hoje lido à luz das mais recentes teorias feministas (ou emergentes dos Estudos Feministas, como a teoria queer), uma vez que resiste à catalogação ao desmantelar as fronteiras entre os géneros narrativo, poético e epistolar, empurrando os limites até pontos de fusão.»
Ana Luísa Amaral in «Breve Introdução»
Minha review no GoodReads
O livro Novas Cartas Portuguesas foi publicado em 1972, em plena ditadura do Estado Novo (Salazar já tinha morrido em 1970, mas o regime continuava sob Marcelo Caetano). Era uma época marcada pela censura, pelo patriarcado e pela guerra colonial.
As mulheres viviam sob forte controlo moral, jurídico e social. Precisavam de autorização do marido para trabalhar ou viajar, eram discriminadas no trabalho e na educação, e os ideais de feminilidade passavam por submissão, maternidade e domesticidade. Ainda que algumas vozes já se fizessem ouvir, o feminismo, em Portugal, estava ainda muito silenciado.
As NCP foram “uma pedrada no charco”. A escrita a seis mãos — impossível saber quem escreveu o quê — fragmenta o discurso, desmonta tradições e dá corpo a vozes femininas que recusam ser silenciadas. Essa ousadia expôs de forma crua e poética a condição feminina, ao denunciar o machismo, a repressão sexual e a violência do regime. Tudo isto num registo frontal e provocatório, inédito neste “rectângulo à beira-mar plantado”.
Obviamente que o livro foi imediatamente apreendido pela censura – 3 dias após o lançamento pelos Estúdios Cor, com Natália Correia na linha da frente - e as autoras foram acusadas de pornografia e atentado à moral pública. O caso ecoou pelo mundo e, com o apoio de algumas figuras como Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre ou Marguerite Duras, tornou-se um símbolo internacional. O processo contra as Três Marias só foi concluído depois da Revolução dos Cravos.
Inspirado nas Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado, o livro recupera a voz da freira bejense do século XVII para a confrontar com a realidade do século XX. Entre cartas, poemas, ensaios e narrativas fragmentadas, as autoras denunciam a repressão do regime, a violência patriarcal e a guerra colonial. Falam de sexualidade, maternidade, violência doméstica, aborto, incesto, pobreza, emigração, exílio e censura, sempre com uma linguagem combativa e desafiadora.
Embora seja, sem dúvida, uma obra maior da literatura portuguesa e um marco no feminismo, Novas Cartas Portuguesas é também um livro exigente. A fragmentação, a multiplicidade de vozes e a densidade dos temas obrigam a uma leitura atenta e paciente. Não é uma obra feita para ser lida de um fôlego, nem para se “consumir” com leveza.
Percebi isso na minha própria experiência: houve momentos em que me senti perdida entre cartas, poemas e ensaios, sem saber bem de onde vinha a voz que lia, ou a que tempo e contexto pertenciam. Essa desorientação faz parte da proposta do livro, mas pode tornar-se dura para o leitor. A edição anotada ajuda muito, mas mesmo assim é preciso disponibilidade e entrega.
Ainda assim, acredito que essa dificuldade é também a sua força. É um livro que nos obriga a parar, a pensar, a sentir desconforto. Mais conhecido do que lido Novas Cartas Portuguesas continua a ser um desafio. Não é fácil, mas é necessário, e por isso mesmo continua vivo e actual.
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