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[Opinião] Fahrenheit 451 - Ray Bradbury

                       



Título: Fahrenheit 451

Série: -

Autor: Ray Bradbury

Data de Leitura: 10/04/2025 ⮞ 17/04/2025

Classificação: 


Sinopse

O sistema era simples. Toda a gente compreendia. Os livros deviam ser queimados, juntamente com as casas onde estavam escondidos... Guy Montag era um bombeiro cuja tarefa consistia em atear fogos, e gostava do seu trabalho. Era bombeiro há dez anos e nunca questionara o prazer das corridas à meia-noite nem a alegria de ver páginas consumidas pelas chamas... Nunca questionara nada até conhecer uma rapariga de dezassete anos que lhe falou de um passado em que as pessoas não tinham medo. E depois conheceu um professor que lhe falou de um futuro em que as pessoas podiam pensar. E Guy Montag apercebeu-se subitamente daquilo que tinha de fazer... De implicações assustadoras, a forma como reconhecemos o nosso mundo naquele que é retratado em Fahrenheit 451 é impressionante.


Minha review no GoodReads


Não sou fã de ficção científica, as distopias também não me seduzem com facilidade. Mas de vez em quando, é importante sair da zona de conforto e mergulhar num clássico que desafia os nossos hábitos de leitura.


QUEIMAR ERA UM PRAZER.


Há livros que nos inquietam desde a primeira página, e outros que nos conquistam aos poucos. Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, fez comigo um pouco de ambos — começou por me baralhar, depois despertou-me, e no fim deixou-me rendida.


As primeiras páginas foram uma espécie de mergulho em águas turvas: confusos, simbólicos, oníricos. Não foi fácil entrar naquele mundo distópico onde os bombeiros não apagam fogos — queimam livros —, e onde as pessoas vivem imersas num entretenimento anestesiante, desligadas de si próprias e umas das outras. A personagem da Mildred, a mulher de Montag, quase me confundiu com a sua passividade mecânica: terá morrido? teve uma overdose? era humana ou apenas reflexo da máquina?


Mas havia Clarisse, uma espécie de figura luminosa (quase etérea), cheia de curiosidade, sensibilidade e espontaneidade.

É ela o fósforo que acende o papel ainda húmido de Montag. Uma rapariga aparentemente simples, sensível e atenta, que faz perguntas em vez de dar respostas, que ouve em vez de falar — e cuja presença silenciosa abre caminho para a dúvida. É feliz?, pergunta ela. Uma pergunta banal que, num mundo dormente, se torna um sismo.


A partir daqui, tudo muda. A conversa de Montag com o capitão Beatty marca o início de uma viragem clara: os discursos de Beatty são sedutores e terrivelmente articulados, e é essa sofisticação venenosa que revela até que ponto o sistema não se sustenta apenas na ignorância — mas também na manipulação consciente.

Beatty representa o paradoxo de quem sabe, mas escolhe negar. É culto, cita autores, entende o poder dos livros... e, mesmo assim, defende a sua destruição. Usa o conhecimento não para iluminar, mas para manipular. É o antagonista, mas, no fundo, é o espelho do que Montag poderia ter sido, se tivesse escolhido o conformismo em vez da dúvida.

Montag, cada vez mais inquieto, é arrastado para um caminho sem retorno.


A cena em que é forçado a incendiar a própria casa — culminando na morte de Beatty e na fuga do cão mecânico — é o momento de ruptura total. Mas a verdadeira libertação só acontece quando Montag atravessa os trilhos do comboio e entra nos bosques. A floresta representa a reintegração na natureza, na memória, no tempo. Deixa o mundo das máquinas para trás e reencontra-se com os homens-livro — anciãos que guardam obras inteiras na memória, não para as possuir, mas para as preservar. A cultura vive neles, e é por eles que se acende a centelha de um novo futuro.


Bradbury não oferece respostas fáceis. Este é um livro que nos desafia profundamente enquanto leitores conscientes, que valorizam a liberdade de pensamento, a democracia participativa e a igualdade como pilares fundamentais da vida em sociedade. Deixa-nos desconfortáveis, porque nos obriga a ver que nem sempre é a opressão declarada que destrói a liberdade — às vezes, basta o esquecimento, o desinteresse, a saturação de distracções. Clarisse lembra-nos que, muitas vezes, são as coisas pequenas — ouvir a chuva, olhar para as estrelas, fazer uma pergunta simples — que podem iniciar a verdadeira revolução interior.


No fim, Fahrenheit 451 não é só uma distopia sobre livros queimados. É uma metáfora poderosa sobre o que acontece quando se apaga o pensamento e se abdica da consciência. E é também, talvez, um convite — para que sejamos fósforos e não cinzas.