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[Opinião] James - Percival Everett

                     


 

Título: James

Série: -

Autor: Percival Everett

Data de Leitura: 15/11/2025 ⮞ 17/11/2025

Classificação: 


Sinopse

Quando o escravo Jim ouve rumores de que será vendido a um homem de Nova Orleães e para sempre separado da mulher e da filha, decide esconder-se na ilha de Jackson e conceber um plano. Inesperadamente, vê aparecer o jovem Huck Finn, que acaba de fingir a própria morte para escapar às mãos do pai violento. Mais de um século depois de Mark Twain ter escrito As Aventuras de Huckleberry Finn, elas são agora retomadas por Percival Everett, que lhes muda o ponto de vista. Quem é Jim? Quais as suas paixões? E até onde está disposto a ir para vingar os seus? James é uma reinvenção brilhante de um clássico da literatura mundial, ferozmente divertido e provocador, e uma lição notável sobre o poder da linguagem, pelas mãos de um dos mais aclamados autores norte-americanos da atualidade.


Minha review no GoodReads


Há alguns anos, quando li The Adventures of Huckleberry Finn, senti que o romance de Twain, apesar de narrado por Huck, tinha uma sombra gigantesca: Jim. Na altura escrevi que a história me parecia mais sobre Jim do que Huck., e que o escravo fugido oscilava entre o cómico e o trágico, entre o sonho da liberdade e a humanidade de salvar um rapaz branco ferido, mesmo colocando em risco a sua própria vida. Já nessa leitura se insinuava a ideia de que Jim carregava uma história dentro de si, uma que o romance original apenas deixava entrever.

É precisamente essa narrativa escondida que Percival Everett resgata, expande e faz explodir em James.

Twain abre o seu livro com a voz insolente e ingénua de Huck:

YOU don't know about me, without you have read a book by the name of The Adventures of Tom Sawyer; but that ain't no matter. That book was made by Mr. Mark Twain, and he told the truth, mainly. There was things which he stretched, but mainly he told the truth. That is nothing. I never seen anybody but lied one time or another, without it was Aunt Polly, or the widow, or maybe Mary. Aunt Polly—Tom's Aunt Polly, she is—and Mary, and the Widow Douglas is all told about in that book, which is mostly a true book, with some stretchers, as I said before.

Everett, por seu lado, apresenta-nos James, um homem negro alfabetizado que é forçado a fingir ignorância para sobreviver:

— Os brancos esperam que falemos de uma determinada maneira e só ganhamos em não os desiludir — respondi. — Quem sofre quando eles se sentem inferiores somos nós. Talvez devesse dizer «quando não se sentem superiores». Vamos lá então fazer uma pausa para rever a matéria básica.

O artifício linguístico que Twain utilizou para marcar a “fala dos escravos” é aqui recuperado e invertido, de modo a mostrar como a linguagem pode ser uma arma de submissão e, simultaneamente, de resistência. Se entre brancos James tem de representar o papel de analfabeto, entre iguais fala com uma eloquência e uma inteligência que mudam por completo tudo o que julgávamos saber sobre ele.

A fuga ao longo do rio Mississippi, que em Twain tem algo de travessura juvenil, converte-se aqui numa viagem desesperada, onde cada passo pode significar vida ou morte. Huck continua presente, um miúdo ingénuo, vítima de um pai violento e alcoólico, mas a sua aventura ganha outra dimensão quando percebe verdadeiramente o que significa a escravatura.

— Já escolheste de que lado estás? — perguntei.

— Do lado da União — disse ele.

— São a favor da escravatura ou contra?

— São contra.

Assenti.

— Obrigado, Huck.

Se já achava que o original era uma subtil declaração a favor da igualdade e contra o racismo, Everett retoma a história, vira-a do avesso e revela os silêncios e as distorções inscritos no texto de Twain.

Há episódios que condensam o absurdo da supremacia branca, como o dos músicos que se pintam de negro para imitarem escravos, enquanto o próprio James é obrigado também a pintar-se para se disfarçar:

— Pessoal, pintem-se de preto. Está quase na hora de irmos para a vila.

Emmett passeou-se pelo acampamento como um general.

— Esclarece-me uma coisa — disse eu a Norman. — Tenho de parecer um negro autêntico, mas para isso tenho de me pintar.

— Não é bem assim. Tu és negro, mas, se eles souberem que és negro, não te deixam entrar no auditório, por isso tens de ser branco debaixo da maquilhagem para pareceres negro ao público.

Se achava que Twain em 1884 deve ter feito um grande estrondo, Everett vai mais longe e não só reescreve, reivindica como dá voz à personagem que sempre esteve lá, mas que a tradição literária manteve em silêncio.