Mia Couto é um dos mais conhecidos escritores moçambicanos, reconhecido pelo seu estilo único, que combina o realismo mágico, a oralidade africana e uma forma única de "brincar" com a língua portuguesa. Compêndio para Desenterrar Nuvens reúne 22 contos que foram publicados mensalmente na revista Visão.
Todos os contos são de qualidade, uns melhores do que outros, mas todos com a excelência a que o autor já nos habituou.
A carta sem correio
No meu bairro todos têm a mesma carreira. Empresários é o que todos somos lá no bairro e nenhum de nós tem empresa. Empresários por conta imprópria.(..) A nossa oficina é parecida com a vida. Por fora, engana. Por dentro, mente.
Viúvas vizinhas
— As mulheres querem tanto ser boas esposas que se tornam ninguém.
(…)
— Sou dessas mulheres que enviúvam antes de o marido morrer. Vamos ficando viúvas de nós mesmas. Por essa outra vida que perdemos, ninguém nos dá os pêsames.
O regresso a casa
A esposa que entendesse: não era aceitável que, com agilidade surgida do nada, ela se desviasse dos socos e se esquivasse dos pontapés. Primeiro, porque naquele inesperado desvio o agressor arriscava desequilibrar-se e até se aleijar. (…) E, por fim, havia a triste insensibilidade de Matilde, que não entendia o quanto um marido sofre por ter de castigar a esposa. Sofre tanto que não suporta a acrescida humilhação do fracasso.
O vendilhão do tempo
porque contar os anos não traz boa sorte para ninguém. Dizem os antigos: deixemos o tempo sossegado para que ele possa dormir dentro de cada pessoa.
O culto dos pesarosos
— E a ti, Osório? O que te receitaram?
(…)
— Tens cara de andar nos ansiolíticos...
(…)
— Nada. Não estou a tomar nada.
Olharam-me estupefactos. Nada?
— É que estou bem — justifiquei-me.
— Como assim? — quiseram saber.
— Durmo bem, amo e sou amado — e já meio a medo confessei: — Meus amigos, sou uma pessoa feliz.
— Feliz? — perguntaram em coro.
— Peço desculpa — murmurei. — É mais forte do que eu.
(…)
— Quer dizer, sou feliz, mas atenção: lá vou tendo as minhas angústias. Uma noite destas, por exemplo...
Não me deixaram terminar a frase. O mais velho dos amigos segurou-me no braço. O tom da sua voz era amigável, mas os dedos estavam crispados na minha carne.
— Tens de compreender, Osório. Essa tua postura deixa-nos a todos muito... — e procurou o termo certo — ... muito desconfortáveis.
— Eu sei, eu sei — admiti com sinceridade. — Estou a tentar mudar. Ando a pensar...
— Não é pensar, Osório, é agir! — sentenciou o mais velho. — Ser feliz num tempo destes é politicamente incorreto.
Naquele momento pensei: «vou ser cancelado deste clube dos sonhadores mortiços». E passou por mim uma estranha mistura de comiseração e alívio.
Sem teto
O que se passa com a política faz lembrar o estado do teto da sua casa. A política ficou embolorecida enquanto espera por reparação estrutural. Desloca-se apenas em cadeira de rodas. Quem a empurra pelo esburacado passeio público é o mercado. E o mercado é uma criatura enganadora: ao longe, ofusca-nos o seu artificioso fulgor; mais perto, todos percebem que sofre de cegueira. Quem lhe paga os falsos brilhantes são os dinheiros públicos.
Submissa desobediência
— O meu corpo deixou de gostar de mim — disse ela, babando-se nas minhas costas. — Mas não culpes o teu pai, filha: as saídas dele, à noite, estão autorizadas por mim. O teu pai vai-me buscar no corpo de outras mulheres.
(…)
pesa muito carregar uma alma vazia.
O nome do pai
A importância de um homem mede-se pela poeira que levanta. Naquele momento, o meu pai era o rei dos reis. Era pena que ele só reinasse quando estava ausente.
(…)
Não fomos ao funeral porque a minha primeira mãe estava enferma. E ela mesmo, meses depois, desistiu-se (é assim que dizemos na nossa aldeia). Semeámo-la junto à árvore da família.
O eterno retorno
Envelhecer dá tanto trabalho que acabamos por ficar velhos.
(…)
— Não tens que ter medo — disse Dorandina — Quando os filhos nascem voltam a nascer todos os que nos antecederam.
O descrucificado
Às vezes penso que, desde há milénios, estamos todos, no mundo inteiro, abrindo a mesma estrada. Quando a percorremos acreditamos que não nos basta. Mas não é caminho que nos falta. O que nos falta é a viagem.
Lição de caligrafia
Começo por confessar um segredo: a escrita é um rio. As vogais são água. As consoantes são pedras. A escrita é um rio antigo, que se inunda de gente. E o alfabeto é um barco. A maioria das pessoas nunca viajou nesse barco.
Repara, filha: o espaço entre as letras é um pestanejar. O espaço entre as palavras é um suspiro. E o parágrafo é um degrau. A escrita é uma escada de pernas para o ar: descemos quando queremos voar, subimos para nos tornarmos pequenos.
Agora já podes ver como as linhas do caderno são fios onde estendes panos a secar. Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.
Outra confidência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não pode haver vaidade no alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase seguinte, já desceu do pedestal. Somos como as letras: o tamanho que temos depende dos outros que, junto connosco, costuram as frases.
Mais um conselho: não é com a perfeição do desenho que te deves ocupar. Esse desenho será sempre imperfeito se não despertar a gente que mora dentro de ti. Se não escutares essas vozes é melhor rasgares a folha. Não se escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.
Depois do teu primeiro dia de escola, quis saber como tinha sido a tua estreia como aluna:
— Tivemos aula de clarigrafia — murmuraste sem erguer os olhos do caderno.
— Essa palavra não existe, minha filha — avisei.
A verdade é que, errando, disseste o que é correto: a caligrafia nos clarifica.
(...)
Nas palavras do avô, a guerra é um cemitério escavado num país sem chão.
O bosque
A conversa entre os dois era como a casa: sem poeira, mas cheia de paredes.