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[Opinião] Compêndio para Desenterrar Nuvens - Mia Couto

       


     
          

Título: Compêndio para Desenterrar Nuvens

Série: -

Autor: Mia Couto

Data de Leitura: 02/02/2025 ⮞ 03/02/2025

Classificação: 


Sinopse

No universo literário de Mia Couto, em que uma coisa, um animal, por exemplo, pode ser uma pessoa, as nuvens, que, com os nossos olhos, vemos circulando pelo céu, podem, se consideradas com a imaginação, existir debaixo da terra. E se é assim, um Compêndio para Desenterrar Nuvens tem para nós a maior utilidade.


Nestes vinte e dois exercícios de imaginação mais uma vez Mia Couto nos serve de guia para descobrirmos o que está no que vemos com os olhos e no que a imaginação nos dá a ver.


E atenção: nem sempre as duas imagens coincidem.


Minha review no GoodReads


4,5 ⭐️

Mia Couto é um dos mais conhecidos escritores moçambicanos, reconhecido pelo seu estilo único, que combina o realismo mágico, a oralidade africana e uma forma única de "brincar" com a língua portuguesa. Compêndio para Desenterrar Nuvens reúne 22 contos que foram publicados mensalmente na revista Visão.
Todos os contos são de qualidade, uns melhores do que outros, mas todos com a excelência a que o autor já nos habituou.


A carta sem correio

No meu bairro todos têm a mesma carreira. Empresários é o que todos somos lá no bairro e nenhum de nós tem empresa. Empresários por conta imprópria.(..) A nossa oficina é parecida com a vida. Por fora, engana. Por dentro, mente.

Viúvas vizinhas

— As mulheres querem tanto ser boas esposas que se tornam ninguém.
(…)
— Sou dessas mulheres que enviúvam antes de o marido morrer. Vamos ficando viúvas de nós mesmas. Por essa outra vida que perdemos, ninguém nos dá os pêsames.

O regresso a casa

A esposa que entendesse: não era aceitável que, com agilidade surgida do nada, ela se desviasse dos socos e se esquivasse dos pontapés. Primeiro, porque naquele inesperado desvio o agressor arriscava desequilibrar-se e até se aleijar. (…) E, por fim, havia a triste insensibilidade de Matilde, que não entendia o quanto um marido sofre por ter de castigar a esposa. Sofre tanto que não suporta a acrescida humilhação do fracasso.

O vendilhão do tempo

porque contar os anos não traz boa sorte para ninguém. Dizem os antigos: deixemos o tempo sossegado para que ele possa dormir dentro de cada pessoa.

O culto dos pesarosos

— E a ti, Osório? O que te receitaram?
(…)
— Tens cara de andar nos ansiolíticos...
(…)
— Nada. Não estou a tomar nada.
Olharam-me estupefactos. Nada?
— É que estou bem — justifiquei-me.
— Como assim? — quiseram saber.
— Durmo bem, amo e sou amado — e já meio a medo confessei: — Meus amigos, sou uma pessoa feliz.
— Feliz? — perguntaram em coro.
— Peço desculpa — murmurei. — É mais forte do que eu.
(…)
— Quer dizer, sou feliz, mas atenção: lá vou tendo as minhas angústias. Uma noite destas, por exemplo...
Não me deixaram terminar a frase. O mais velho dos amigos segurou-me no braço. O tom da sua voz era amigável, mas os dedos estavam crispados na minha carne.
— Tens de compreender, Osório. Essa tua postura deixa-nos a todos muito... — e procurou o termo certo — ... muito desconfortáveis.
— Eu sei, eu sei — admiti com sinceridade. — Estou a tentar mudar. Ando a pensar...
— Não é pensar, Osório, é agir! — sentenciou o mais velho. — Ser feliz num tempo destes é politicamente incorreto.
Naquele momento pensei: «vou ser cancelado deste clube dos sonhadores mortiços». E passou por mim uma estranha mistura de comiseração e alívio.

Sem teto

O que se passa com a política faz lembrar o estado do teto da sua casa. A política ficou embolorecida enquanto espera por reparação estrutural. Desloca-se apenas em cadeira de rodas. Quem a empurra pelo esburacado passeio público é o mercado. E o mercado é uma criatura enganadora: ao longe, ofusca-nos o seu artificioso fulgor; mais perto, todos percebem que sofre de cegueira. Quem lhe paga os falsos brilhantes são os dinheiros públicos.

Submissa desobediência

— O meu corpo deixou de gostar de mim — disse ela, babando-se nas minhas costas. — Mas não culpes o teu pai, filha: as saídas dele, à noite, estão autorizadas por mim. O teu pai vai-me buscar no corpo de outras mulheres.

(…)

pesa muito carregar uma alma vazia.

O nome do pai

A importância de um homem mede-se pela poeira que levanta. Naquele momento, o meu pai era o rei dos reis. Era pena que ele só reinasse quando estava ausente.

(…)

Não fomos ao funeral porque a minha primeira mãe estava enferma. E ela mesmo, meses depois, desistiu-se (é assim que dizemos na nossa aldeia). Semeámo-la junto à árvore da família.

O eterno retorno

Envelhecer dá tanto trabalho que acabamos por ficar velhos.

(…)

— Não tens que ter medo — disse Dorandina — Quando os filhos nascem voltam a nascer todos os que nos antecederam.

O descrucificado

Às vezes penso que, desde há milénios, estamos todos, no mundo inteiro, abrindo a mesma estrada. Quando a percorremos acreditamos que não nos basta. Mas não é caminho que nos falta. O que nos falta é a viagem.

Lição de caligrafia

Começo por confessar um segredo: a escrita é um rio. As vogais são água. As consoantes são pedras. A escrita é um rio antigo, que se inunda de gente. E o alfabeto é um barco. A maioria das pessoas nunca viajou nesse barco.
Repara, filha: o espaço entre as letras é um pestanejar. O espaço entre as palavras é um suspiro. E o parágrafo é um degrau. A escrita é uma escada de pernas para o ar: descemos quando queremos voar, subimos para nos tornarmos pequenos.
Agora já podes ver como as linhas do caderno são fios onde estendes panos a secar. Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.
Outra confidência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não pode haver vaidade no alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase seguinte, já desceu do pedestal. Somos como as letras: o tamanho que temos depende dos outros que, junto connosco, costuram as frases.
Mais um conselho: não é com a perfeição do desenho que te deves ocupar. Esse desenho será sempre imperfeito se não despertar a gente que mora dentro de ti. Se não escutares essas vozes é melhor rasgares a folha. Não se escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.
Depois do teu primeiro dia de escola, quis saber como tinha sido a tua estreia como aluna:
— Tivemos aula de clarigrafia — murmuraste sem erguer os olhos do caderno.
— Essa palavra não existe, minha filha — avisei.

A verdade é que, errando, disseste o que é correto: a caligrafia nos clarifica.

(...)

Nas palavras do avô, a guerra é um cemitério escavado num país sem chão.

O bosque

A conversa entre os dois era como a casa: sem poeira, mas cheia de paredes.