Título: Flores ao Telefone | Os Idólatras | Tempo de Mercês
Série: Obras Completas de Maria Judite de Carvalho #3
Autor: Maria Judite de Carvalho
Data de Leitura: 06/03/2022 ⮞ 06/04/2022
Classificação: ⭐⭐⭐⭐⭐
Sinopse
A presente coleção reúne a obra completa de Maria Judite de Carvalho, considerada uma das escritoras mais marcantes da literatura portuguesa do século XX.
Herdeira do existencialismo e do nouveau roman, a sua voz permanece intemporal, tratando com mestria e um sentido de humor único temas fundamentais, como a solidão da vida na cidade e a angústia e o desespero espelhados no seu quotidiano anónimo.
Observadora exímia, as suas personagens revelam o ritmo fervilhante de uma vida avassalada por multidões, mas sempre reclusas em si mesmas, separadas por um monólogo da alma infinito.
O terceiro volume reúne duas coletâneas de contos - Flores ao Telefone (1968), Os Idólatras (1969) e Tempo de Mercês (1973).
Minha review no GoodReads
Angústias | Tristezas | Desânimo | Insatisfação | Melancolia
Flores ao Telefone
Depois deitou-se e adormeceu. Ela ficou longo tempo de olhos bem abertos na noite. Era um homem frio e distante mas ela amava-o. E ele, ainda gostaria dela? Às vezes pensava que não, que isso tinha passado, mas ele dizia «Querida» e ela enroscava-se na sua crença. Se não fosse ele chamar-lhe «querida», há muito que o teria deixado. Era também um homem amargo e egoísta. Mas talvez se tratasse de simples cansaço da parte dela. Tinha quarenta anos e pensava que a viagem era curta e estava quase no fim, não valia a pena apressar-se nem debater-se.
Diário para a saudade
Não tinha mãe, e isso via-se à distância nos seus sapatorros grandes e grossos (para crescer), no casaco um pouco comprido e na saia um pouco curta (feitos para durar), na falta de confiança com que encarava tudo e todos.
A Floresta em sua casa
As crianças ouviram dizer que no jornal viera a notícia da morte, no jardim de Choa, junto ao Nilo Azul, do último leão do mundo. E isso pareceu-lhes apaixonante, era como se estivessem, também eles, à beira de um precipício e lá em baixo fosse a outra era, aquela em que não haveria leões.
Nós temos um leão, disse o mais pequeno quando estavam deitados e de luz apagada.
É de pano pintado."
O resto é de pano pintado. Ele não.
És parvo.
Os olhos dele são a sério. É um leão. E deve ter fome. Sentou-se na cama. O que comerá um leão?
Tempo de Mercês
No que eu acredito é num inferno sem diabos, se me faço compreender. Um inferno sem nada e sem ninguém. Sem inferno até. A solidão total e nós a batermos com a cabeça em paredes que não existem. A solidão pelos séculos dos séculos, ámen. A incomunicabilidade total. A recordação de palavras, de gestos, de imagens e, à nossa volta, nem palavras, nem gestos, nem imagens. É este o meu inferno. Literário, não?