Boris Pahor nasceu em 1913 (fará em 26/08/2020 107 anos)* numa pequena comunidade eslovena em Trieste, capital da região litoral austríaca e porto principal do Império Austro-Húngaro.
Durante a sua vida foi testemunha de duas grandes guerras, dos excessos e horrores dos regimes fascistas, de sofrimento humano extremo e de grandes convulsões sociais.
Em 1944 foi preso pelos Nazis por suposto envolvimento com a resistência eslovena, e mantiveram-no como prisioneiro político em diversos campos de concentração - Natzweiler-Struthof, Dachau, Mittelbau-Dora, Harzungen, e finalmente Bergen-Belsen, onde foi libertado em 15 de Abril de 1945 – onde viveu e testemunhou horrores inimagináveis.
É um livro emocionante, terrível e trágico. Uma obra-prima que infelizmente não está publicada no nosso país.
Seria de fato oportuno procurar a origem desta desumanização, pois as explicações econômicas, e sociológicas não bastam; e tampouco a teoria das raças de Gumplowitz ou os livros de Friedrich von Gagern.
A cada palavra teria o receio de deixar escapar uma nota desafinada, porque da morte e do amor só podemos falar conosco mesmos ou com a pessoa amada, com a qual formamos uma coisa só. Nem a morte nem o amor tolera a presença de estranhos.
(…) mesmo assim continuava a dizer-lhe que agira errado, que deveria ter lembrado o que diziam os nossos pais quando voltavam da frente de batalha de Isonzo: ‘Não pode ter medo da morte, porque, se tiver medo, então tropeça, e então a morte pula em cima de você; precisa permanecer lúcido, todos os seus gestos devem ser naturais.’?
Seja como for, nisso somos parecidos com os judeus e os ciganos; nós também, como eles, através de toda a nossa história tivemos de lidar com o problema da assimilação.
(… )aquelas expressões de fraternidade só fossem filhas do ambiente em que eram proferidas; porque na igualdade final, diante da fome e das cinzas, não era obviamente possível continuar preso a prerrogativas e privilégios até então defendidos com a maior obstinação. Por isso parecia-me descabido, depois de tantos anos de vida em comum nas mesmas ruas e nas mesmas costas, que meu concidadão representante da elite italiana falasse pela primeira vez com um toque de humanidade logo aqui, onde tudo que é humano estava sendo negado; era a igualdade dos nossos corpos condenados que tirava do caminho os empecilhos, e eu ficava com nojo só de pensar que o promotor do lançamento dessa nova irmandade fosse apenas o medo do forno.
Como sempre na vida, mesmo num aperto como aquele é preciso ter as ideias bem claras, saber exatamente o que se quer e procurar alcançar a meta, apesar do delírio do pânico. Claro, não é fácil lutar num corre-corre confuso no qual o chispar das lanternas elétricas se alterna ao das malditas chicotadas, enquanto por toda parte há bocas gritando, prontas a cair em cima de você.
O doutor Blaha conta que, em Dachau, peles humanas era penduradas como panos a secar. Eram usadas para se obter um couro muito fino, perfeito para calças de montar, pastas e carteiras, pantufas macias e encadernações de livros. Não era aconselhável, brinca o doutor Blaha, ter pele bonita.
O mal, que aqui superava qualquer dimensão imaginável, já estava presente em mim havia muito tempo, como a sombra de um monstro à espreita. E agora chego muitas vezes a pensar que, devido justamente a essa minha união com o terror, no meu íntimo eu já não passava, naquela época, de uma insensível máquina de filmar, só capaz de registrar, sem participar.
De forma que a Europa saiu do pós-guerra, que poderia ter sido o período da sua completa e definitiva purificação, como uma inválida à qual alguém aplicou olhos de vidro para ela não assustar os bons cidadãos com as suas olheiras vazias (…)
A minha alma revolta-se diante daqueles remendos brancos misturados com as tábuas enegrecidas, descoradas e gastas; nem tanto pela cor, pois sabia que o homem iria pintar as novas tábuas tornando-as iguais às antigas; acontece que eu simplesmente não podia tolerar aqueles pedaços de madeira tosca recém aplainada. Era o mesmo que alguém tentasse inocular células novas e vivas numa podridão morta, como se alguém enxertasse uma perna branca num montão de múmias enegrecidas e ressecadas. Eu era a favor da intangibilidade da danação. Pois é, agora já não consigo distinguir os pedaços acrescentados; o mal engoliu e destruiu as novas células, infectando-as com a podridão dos seus humores.