Título: Esteiros
Série: -
Autor: Soeiro Pereira Gomes
Data de Leitura: 02/07/2023 ⮞ 08/07/2023
Classificação: ⭐⭐⭐⭐⭐
Sinopse
Noutras noites, quando o luar parecia escorrer pelas escadas do forno, puídas de velhice, e os esteiros eram fiada de espelhos, os rapazes cismavam, fitando os astros. A brisa emitia sons de melodias longínquas; coaxavam rãs entre os limos da charca; uma estrela riscava o céu. Alguém, então, desencantava o silêncio do grupo.
— Gaitinhas, canta um fadinho… …
Minha review no GoodReads
Joaquim Soeiro Pereira Gomes nasceu em Gestaçô, distrito do Porto, no ano de 1909. Foi um dos grandes nomes do neo-realismo em Portugal.
Trabalhou como empregado administrativo numa fábrica de cimentos – Cimentos do Tejo, actual CIMPOR - e começou a desenvolver um trabalho de dinamização cultural junto da classe operária.
Militou no Partido Comunista Português e hoje a sede do partido recebe o seu nome (Edifício Soeiro Pereira Gomes).
Entre as suas obras, destaca-se "Esteiros", publicado em 1941, que é considerado a sua obra-prima. A primeira edição do livro foi ilustrada por Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP.
Mesmo vivendo clandestinamente durante o governo de Salazar, Soeiro Pereira Gomes continuou o seu trabalho como militante até adoecer com cancro no pulmão. Impedido de receber o tratamento médico necessário, faleceu em cinco de dezembro de 1959.
Fábrica Cimentos do Tejo, Alhandra |
Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama, que só o rio afaga.
O romance está dividido em 4 capítulos que têm como título os nomes das quatro estações do ano:
Outono
Com os prenúncios de Outono, as primeiras chuvas encheram de frémitos o lodaçal negro dos esteiros, e o vento agreste abriu buracos nos trapos dos garotos, num arrepio de águas e de corpos.
Inverno
Mãos esquecidas nos bolsos e pés roxos de frio, os garotos cosiam-se com os portais, à espera do caldo ou do sol que pouco aquecia.
Primavera
Flocos de nuvens no céu, como o bando de pombas brancas que roça asas no Mirante. Nuvem de flores nas árvores do vale. Céu a desbotar azul no rio calmo, sem remorsos das cheias, de que já pouca gente se lembra.
Verão
Os saveiros apagam as luzes. Depois — remos em movimento, como asas enormes de pássaros — vêm encostar-se à ponta dos esteiros, enquanto a água vaza. São mais negros do que a noite — negros como a vida de quem neles labuta, noite e dia.
O romance denuncia as péssimas condições em que vivem e trabalham uma pequena comunidade em Alhandra. É através da história de algumas crianças que nos é apresentado o trabalho sazonal nos telhias, a fabricar tijolos e telhas.
Gineto
Com sete anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira.
— Mestre: tome-me conta deste fidalgo.
Mas antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados desconhecidos. À noite, esperava-o a tareia do costume, em vez da ceia, e, na manhã seguinte, regressava ao telhal pelas orelhas.
Sagui
Sagui era pequeno, mas tinha fama de comilão. Só fama…
Maquineta
— Quando eu trabalhar com as máquinas… — E, de tanto falar em máquinas, chamaram-lhe Maquineta.
Gaitinhas
João era o Gaitinhas, porque gostava de imitar os instrumentos da banda musical. Nos domingos de concerto, postava-se junto do coreto, atrás do regente, de olhos postos nos saxofones e clarinetes reluzentes, indeciso na escolha.(…) Mas entrou para a escola e quis ser doutor.
Toda a história destas crianças denuncia a situação precária da região dos esteiros do Tejo, realçando a decadência de uma vida sem acesso à educação, numa sociedade cruel que negligencia a classe trabalhadora.
Para os filhos dos homens
que nunca foram meninos,
escrevi este livro.
Alhandra é às portas de Lisboa, mas mesmo assim nunca tinha ouvido falar da Capela da Santa de Alcamé — Senhora das cheias.
Algumas curiosidades:
📌 Alcamé é o aportuguesamento da palavra árabe-marroquina de fonética “achmé”, e que significa trigo. Será assim a Nossa Senhora dos Trigais.
📌 Está associada uma lenda, que reza assim: Em tempos, um pastor encontrou uma pequena cobra e dedicou-se a criá-la, alimentando-a com o leite das ovelhas. A certa altura terá adoecido, ficando vários meses sem ir ao campo. Quando lá voltou, foi ao mouchão e assobiou pelo réptil, como costumava fazer. A cobra apareceu, mas não o reconhecendo, atacou-o de goelas abertas. Aflito, o homem invocou a protecção da Virgem, que apareceu em sua glória, e lançou para a boca da serpente uma maçã. Engasgada e sufocada, a cobra morreu e o pastor salvou-se.
📌 A Ermida de Nossa Senhora de Alcamé, mandada construir em 1746, está simetricamente de frente para Lisboa.
Algumas ilustrações, da 1ª edição
A escrita de Soeiro Pereira Gomes é objectiva e realista, apresentando um estilo directo e claro. A prosa é fluente e acessível, o que permite uma leitura fluida e compreensível. No entanto, considerando que já se passaram 82 anos desde a escrita do livro, algumas palavras e expressões podem representar um desafio, especialmente devido à evolução da língua ao longo desse período. Além disso, é importante destacar que Soeiro Pereira Gomes incorpora regionalismos e utiliza termos ou expressões específicas de determinadas regiões geográficas ou culturais. Esses regionalismos podem ser desconhecidos para pessoas, como eu, que vivem em áreas urbanas ou que não estão familiarizadas com o contexto retratado na obra.
Deixo aqui alguns exemplos:
— Inda nã tocaram as buzas — observou Malesso com os olhos ramelosos.
* sirenes
As histórias contavam-se em noites de Verão, enquanto os fornos lambiam mutanos.
*Lenha miúda, ramos de pinheiro
— Mas olha que não admito tunantices… À primeira, já sabes…
* brincadeiras
No valado, que fora limite de margem e agora era carreiro sem destino, um renque de oliveiras emergia das águas as copas glaucas.
* fila, fileira
* De tom verde-claro ou verde azulado.
— São uma nota alacre na paisagem sem cor — respondeu um rapaz magro, de monóculo.
* Muito alegre.
O cláxon dum automóvel repercutiu-se sobre a vila.
* Buzina
Os amigos, porém, não davam trégua às surriadas.
* provocações
— Andem-me com isso de cagulo!
* desajeitado, desorganizado
(…) e, no maninho dos esteiros, as touças de caniço afilharam.
* áreas estreitas e mais estreitas dos esteiros
* feixes de caniço encontrados nos esteiros
Abriram as taleigas, mataram a fome e o tempo.
* bolsas ou sacos usados para transportar comida ou provisões.
(...) as águas alagaram barreiros e almajares.
* pequenos reservatórios ou tanques usados para armazenar água
— … Quando o gajo me deu o estalo, atirei-lhe os carrulos acima e fugi.
* dentes, será?!!
— Depressa! Tapem aqueles carrulhos.
* pequenos buracos ou furos.
Leitura feita para #incunábulos @mastodon