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[Opinião] Humanos exemplares - Juliana Leite

                               



Título: Humanos Exemplares

Série: -

Autor: Juliana Leite

Data de Leitura: 20/07/2025 ⮞ 13/08/2025

Classificação: 


Sinopse

Natalia é uma mulher velha, muito velha, que passa os dias reclusa em seu apartamento à espera de telefonemas da filha que mora em outro país. Viúva e última sobrevivente de um grande grupo de amigos, ela carrega os seus queridos humanos como um buquê íntimo de desaparecidos, companhias invisíveis que povoam a casa a partir de suas memórias. Vicente, companheiro de Natalia, era professor de geografia e foi perseguido pela ditadura. Sarah, sua melhor amiga, era uma mulher de temperamento impossível e dona de uma loja de biscoitos. Jorge, um morador de rua, lia cartas prevendo o futuro e recebia doses de Campari em troca.

Natalia vive a solidão passeando entre a janela da sala e a mesa da cozinha, às vezes preparando torradas com geleia que a transportam para cenários vívidos em torno dos quais a vida acontecia. Ela sabe que existe mais novidade no que passou do que no presente — e que, portanto, cultivar aquilo que ficou para trás é uma forma de se mover, ainda que parada.

Com simplicidade e uma linguagem singular, Juliana Leite monta uma coleção de sujeitos comuns que, a partir do amor, das relações familiares e da amizade, de dores e equívocos, compõem um mosaico poderoso e delicado, num romance de rara sensibilidade.


Minha review no GoodReads


Natalia é uma velha de cem anos, professora aposentada e viúva, que perdeu todos os amigos para a morte. A sua única filha vive em um oceano superior, — que é como quem diz, num outro país — e com ela mantém apenas um telefonema diário.

Natalia tem mais passado do que futuro, e é esse passado que vamos conhecendo através das suas memórias.

É um livro triste, doloroso e difícil, sobre o envelhecimento e a nossa finitude — o processo, o caminho, a solidão, a morte: quatro estações de uma mesma travessia. Mas é também um livro sobre a vida, os afectos e as lembranças.

No fim, fica cheio de sublinhados, de frases que se instalam na memória e continuam a martelar-nos a mente muito depois de o termos fechado.


A quantidade de ossos que uma velha possui é um espanto, um assombro, porque afinal alguns humanos como ela sumiram, muitos já sumiram e até agora por algum motivo ela permaneceu, ela se sente assim, como alguém que permaneceu, por enquanto.

*

É na mesa da cozinha, no jornal que ainda não foi aberto, que novas pessoas se apagam nas notícias. Todos os dias os apagamentos se acumulam e se empilham por toda parte formando um número impossível. Só de olhar para a lista de apagados uma velha de apartamento pode imaginar que a sorte morreu, que os vivos talvez sejam fruto do acaso e que, mesmo que ainda respirem, bem, eles também desaparecem pouco a pouco, de todo jeito, e em algum momento acabam se unindo aos demais.

*

Nos últimos anos quem olha de fora só vê a mulher sozinha em todos os cômodos, mas não foi sempre assim. Houve um tempo em que quem olhasse pela janela perceberia ali com a mulher pelo menos duas pessoas: Vicente, o marido, e a filha deles, que naquele tempo poderia ser ruiva ou loira perolada, a depender do resultado da tintura. As luzes do apartamento ficavam acesas e o cheiro de comida atravessava a sala. Faz tempo que eles não fazem mais companhia à velha, mas não é por mal. Em algum momento a filha se tornou uma filha que mora longe e Vicente desapareceu porque, bem, ele morreu e por isso ficou ocupado com outras coisas.

*

Descobriam que afinal não era apenas a passagem dos anos que envelhecia as pessoas, não, as dores envelheciam muito mais.

*

Alguém inexperiente e desavisado poderia imaginar que nesses encontros os companheiros quisessem falar sobre o que tinham vivido nos subsolos, comparando o frio e os ferimentos de cada um, expondo testemunhos. Mas isso jamais aconteceu. Sobrevividos, eles temiam abrir demais a boca e assim acabar cuspindo a serpente guardada no estômago, por isso trincavam os dentes e se asseguravam de manter tudo velado. Se num rompante de descontrole e coragem um deles explodisse lançando frases reveladoras sobre seu subsolo, bem, isso aconteceria sempre de maneira raivosa e tormentosa e acusativa, afinal era um absurdo alguém ter passado por tudo aquilo e a família, os amigos já não saberem de cada detalhe por intuição ou por telepatia, por amor. Era uma falha da espécie, uma falha grande e importante que tudo ainda precisasse por fim ser dito.

*

(…) a solidão é cheia de acontecimentos, se você reparar, ela é recheada de cadernos, lápis, pano de chão, lustra-móveis, Tom Jobim, dicionários, porta-retratos.

*

Daqui a alguns anos a filha será tão velha quanto a mãe e então descobrirá que nesse ponto da existência o passado é o único futuro, o único lugar onde alguns encontros ainda acontecem.

*

É curioso ter idade bastante para falar sobre todas as coisas retrospectivamente, uma velha pensa. Ao fim da linha da vida, de repente alguém recebe o direito de subir em uma cadeira e ficar cinquenta centímetros mais no alto para transmitir aos demais humanos as notícias que vêm do passado. Com esse horizonte de ontens à disposição, o alguém trepado na cadeira já pode dar a cada um dos acontecimentos de uma vida um lugar específico no tempo, usando binóculos e apontando o dedo: Foi mais ou menos aqui que tudo começou, e foi aqui, nesse ponto, que chegou ao fim.