Série: -
Autor: Ana de Castro Osório
Data de Leitura: 22/03/2025 ⮞ 08/04/2025
Classificação: ⭐⭐⭐⭐
Sinopse
«O que entendo por — desenvolver livremente as qualidades afectivas na mulher — é deixar-lhe o pleno direito da escolha, o direito sagrado de amar ou não amar, de casar ou ficar solteira, sem que isso represente uma vergonha ou, pelo menos, um ridículo.
Entendo que o ser humano que pertence ao sexo feminino não deve ser coagido pela educação, nem pelos costumes, nem pelas conversas, nem pelos pais — que têm a mania de talhar muito discricionariamente o futuro dos filhos — a ver no casamento um fim, um ideal completo e único, quase uma obrigação.
Assim como o homem pode ser professor, jornalista, sábio, artista, empregado, operário, tudo enfim, sem que ninguém lhe pergunte pela certidão do matrimónio, sem embargo de serem quase todos chefes de família, não vejo inconveniente a que a mulher procure a sua colocação, tenha o seu curso científico, estude, trabalhe para si, para o seu futuro, para a sua vida autónoma, sem se lhe inquirir do seu estado…
Que essa mulher fique solteira, porque não encontrou o companheiro ao qual lhe seria grato ligar o seu destino, ou que, encontrando-o, seja sentimentalmente feliz, que temos nós com isso?
Por acaso nos preocupa a vida conjugal do político A. ou do artista B.?
O maior erro do homem é, a meu ver, estar convencido de que a mulher nasce e existe só para o seu prazer e encanto. Partindo deste princípio, é claro que não nos encontraremos nunca, visto eu pensar de modo tão contrário.
A mulher, como o homem, nasce para si mesma. Tanto um como o outro fazem parte da sociedade, de que são factores igualmente imprescindíveis, que se não compreenderia nem sequer existiria sem a união dos dois sexos, mas na qual indivíduos isolados podem coexistir igualmente, decentes, honestos e respeitáveis — quando muito pagando maior contribuição, como querem alguns economistas franceses…»
Minha review no GoodReads
Kind instructors! what were we created for? To remain, it may be said, innocent; they mean in a state of childhood. We might as well never have been born, unless it were necessary that we should be created to enable man to acquire the noble privilege of reason, the power of discerning good from evil, whilst we lie down in the dust from whence we were taken, never to rise again.
Ignorance is a frail base for virtue! Yet, that it is the condition for which woman was organized, has been insisted upon by the writers who have most vehemently argued in favour of the superiority of man; a superiority not in degree, but essence; though, to soften the argument, they have laboured to prove, with chivalrous generosity, that the sexes ought not to be compared; man was made to reason, woman to feel: and that together, flesh and spirit, they make the most perfect whole, by blending happily reason and sensibility into one character.
A Vindication Of The Rights Of Women, by Mary Wollstonecraft
É preciso entrar numa máquina do tempo, recuar 125 anos e tentar imaginar o que seria a sociedade da época para se fazer um juízo justo sobre este manifesto feminista que Ana de Castro Osório escreveu às mulheres portuguesas quando tinha 33 anos.
Em 2025, algumas das ideias deste manifesto feminista podem parecer-nos retrógradas e conservadoras - outras são bastante actuais - mas foi grande a coragem da ACO ao escrevê-las e mais ainda ao publicá-lo.
Como disse Simone de Beauvoir:
nunca te esqueças que basta uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Terás de te manter vigilante durante toda a vida.
E, nos tempos que correm, basta olhar para o que se passa, por ex., nas terras do Tio Sam, para perceber que essa vigilância tem de ser cada vez mais apertada. Uma vez mais, os direitos das mulheres estão a ser postos em causa. Esperemos que daqui a 125 anos as mulheres do futuro olhem para nós e nos achem retrógradas e conservadoras.
Ana de Castro Osório nasceu a 8 de Junho de 1872 em Mangualde e faleceu a 23 de Março de 1935 em Setúbal. Foi escritora - sobretudo de livros infantis - jornalista e pedagoga. Era também marcadamente feminista e activista republicana.
Na litografia alegórica de homenagem à República, realizada por Roque Gameiro, Ana de Castro Osório é colocada pelo artista como figura de grande relevância. Surge em primeiro plano, ao lado da representação da República, num lugar de inequívoco destaque.
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“Pela República” (Abril de 1910), Roque Gameiro (1864 - 1935) |
No fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, Portugal atravessava um período de grande instabilidade política e social. A monarquia encontrava-se em declínio, processo que culminaria na proclamação da Primeira República, em 1910. Este contexto histórico foi marcado por um forte impulso reformista, impulsionado pela difusão de ideais republicanos, laicos e progressistas, que procuravam modernizar o país em múltiplas dimensões.
Mas, a sociedade portuguesa permanecia profundamente patriarcal, analfabeta e com um catolicismo enraizado que confinava as mulheres ao espaço doméstico excluindo-as, quase por completo, da participação na esfera cívica e política. É precisamente neste cenário que o movimento feminista começa a adquirir maior visibilidade, sobretudo graças ao contributo de figuras como ACO, que se destacou na defesa dos direitos das mulheres e na promoção da educação como instrumento fundamental da emancipação feminina.
Desenvolveu intensa campanha em prol dos direitos das mulheres, fundando o Grupo Português de Estudos Feministas, a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, a Associação de Propaganda Feminista e a Cruzada das Mulheres Portuguesas.
Neste manifesto feminista ACO entra logo a matar:
Feminismo: é ainda em Portugal uma palavra de que os homens se riem ou se indignam, consoante o temperamento, e de que a maioria das próprias mulheres coram, coitadas, como de falta grave cometida por algumas colegas, mas de que elas não são responsáveis, louvado Deus!
e a partir daqui dirige-se às mulheres do seu/meu país, com o objectivo de despertar a sua consciência cívica, social e política num contexto profundamente conservador e machista.
Porque ser feminista não é querer as mulheres umas insexuais, umas masculinas de caricatura, como alguns cuidam; mas sim desejá-las criaturas de inteligência e de razão, educadas útil e praticamente de modo a verem-se ao abrigo de qualquer dependência, sempre amarfanhante para a dignidade humana.
ACO apela:
à educação,
uma educação séria e fundamentada, começando nas coisas práticas e úteis da vida, acabando na literatura e na arte em geral (…)
Educar a mulher; torná-la útil a si e aos seus, pelo trabalho remunerado; escolher cada homem livre esposa que o seja, não só do corpo, mas também do espírito, não só humilde e paciente dona de casa, mas nobre e inteligente educadora, foco de luz e de bondade superior, irradiando na família, como sol por onde se norteia a alma caminhando para o futuro.
à independência financeira através do trabalho,
Mas esperemos serenamente, porque à mulher portuguesa há-de chegar também a sua vez de compreender que só no trabalho pode encontrar a sua carta de alforria. (…)
Educar a mulher dando-lhe meios de poder auferir com o seu trabalho o suficiente para a sua sustentação — quando é só — de auxiliar o homem, esgotado pelo trabalho de sobreposse que lhe exige a concorrência e a carestia da vida moderna — quando casada —, parece-nos a maneira mais prática de a tornar um ser livre, apta a escolher por moto-próprio o caminho a seguir direitamente na vida.
E desde que se torne independente pelo seu próprio esforço, desde que saiba agenciar o pão que come, a casa que habita, os vestidos que veste, sem estar à espera do homem, fonte perene de todo o dinheiro que hoje a sustenta — seja como pai, como marido ou irmão — a sua alforria está decretada.
ao progresso,
É fundamental este assunto, visto que a nossa civilização se baseia não na força, mas na inteligência, não na rotina, mas no progresso.
à instrução das mulheres
O que falta no nosso país é a instrução, principalmente a instrução prática que faz progredir um povo.
A independência da mulher não pode importar o não reconhecimento da autoridade do marido (um dos grandes receios de V. Ex.ª) porque essa autoridade existe, se não de facto, pelo menos de direito, enquanto existirem as leis que hoje nos governam, leis que a mulher deveria conhecer quando vai casar, leis que a tornam uma menor sob a tutela directa do homem.
e à sua participação activa na sociedade,
Escolham os homens livres companheiras que igualmente o sejam; determinem-se os campos, forme-se a família pelas convicções de cada um e não pelas convenções duma sociedade que não tem sinceridade nem nobreza, e a transformação será completa.
à luta por direitos iguais
Por igual trabalho, igual paga — tal deve ser o princípio fundamental do labor feminino.
E defende que as mulheres não podem aceitar continuar a ser espectadoras da história e devem ser protagonistas da transformação social.
Mas não se fica apenas por aqui. Também explora temas como a habitação, a necessidade de hospitais e maternidades, a higiene, a criação de creches e infantários para os filhos das trabalhadoras.
Os homens não ficam bem na fotografia:
O homem português não está habituado a deparar no caminho da vida com as mulheres suas iguais pela ilustração, suas companheiras de trabalho, suas colegas na vida pública; por isso as desconhece, as despreza por vezes, as teme quase sempre.
O homem português, como todo o dos povos latinos, despreza no fundo a mulher, apesar de ser o que mais a tem cantado poeticamente e turificado pelo amor.
Há ao longo do manifesto alguns aspectos conservadores e nacionalistas que aos nossos olhos são retrógrados, mas mesmo assim alguém tinha que dar o pontapé de saída numa luta que não terá fim.
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