Título: Dano e Virtude
Série: -
Autor: Ivone Mendes da Silva
Data de Leitura: 20/07/2022 ⮞ 06/08/2022
Classificação: ⭐⭐⭐⭐
Sinopse
Minha review no GoodReads
Fragmentos diarísticos acerca da banalidade dos dias.
Não me apetece escrever nada, em compensação vou ali ouvir Take this Waltz do Cohen.
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[3]
(...)Dá-me um ramo de orégãos: gosta de orégãos, não gosta, filha?
Se gosto. Gosto de orégãos e de tomilho. De alecrim e do cheiro do mundo ao sábado de manhã.
[32]
Fui para a cozinha fazer gaspacho para guardar no frigorífico e me defender destes dias de calor. Pensei que a poesia não deve andar longe disto: as cores vivas nas minhas mãos, a metáfora de um anjo no pombo pousado no rebordo da janela.
[42]
(...)
Ontem colhi umas hastes de lavada de um tufo que se estende no caminho da tarde. À solapa e rápida para não ser apanhada em flagrante e depois deixei-as junto ao relógio da mesa da Entrada. Quando passo esfrego-as nas mãos e fico a cheirar a armários de roupa branca.
[44]
Apetece-me descalçar os sapatos e colar os pés à lisura dos mosaicos frios. Mas há muita gente em volta e não será grande ideia esse desprendimento. Mesmo assim descalço o pé esquerdo e escondo-o por detrás do outro tornozelo.
[57]
(...)
Liguei a televisão já não sei para quê e estava a dar um episódio do Poirot com aquela personagem fabulosa que é a Mrs. Ariadne Olivier, a escritora de policiais com o seu detective nórdico, vegetariano e virgem, Sven Hjerson. Sei de cor as histórias mas continuo a sorrir-lhes.
[61]
Creio que hoje ainda não disse palavra alguma se exceptuar o "obrigada" à menina que trouxe a chávena de café e a pousou sobre a mesa. Posso até esquecer-me de como soa a minha voz. Vivo bem de silêncio e de água fresca.
[68]
Como é sabido não se deve divagar sobre a efemeridade antes de ter bebido café.
[80]
Faz quase um mês que estou longe do barulho, das vozes altas, das conversas que não quero ouvir, das pessoas com quem não quero estar. Não tarda volto para lá e como sempre só hei-de pensar em perder a cabeça e fugir.
[85]
Nem sei por que motivo pinto eu os olhos com um afã egípcio se pelo meio da manhã o calor e a transpiração já deixaram na minha cara um cenário pós-guerra. Em bom rigor faz tempo que a minha cara é um cenário pós-guerra mas com temperatura decente e luz favorável a coisa disfarça.
[97]
Sou uma pagã adoçada: caminho pelas ruas com um anjo ao colo e um lobo pela trela. Compro fruta madura e caminho sempre em direcção ao silêncio.
[113]
Se eu um dia perder a memória hei-de sentir-me uma casa vazia.
[141]
Hoje sim: pela rua onde passei durante a minha caminhada nocturna cheirava a lareiras. Ainda pensei em bater às portas a perguntar se me queriam para contar histórias à lareira em troca de um jantar.
[150]
Quando me estou a arranjar de manhã e me olho no espelho tomo consciência de que todos os dias o meu rosto cai mais um bocado. E dentro do meu rosto eu vejo o rosto da minha mãe e dentro do rosto dela o que foi da minha avó. E o que é engraçado é que não me pareço nada com elas. Depois ponho batôn e vou à minha vida com um traço colorido no rosto caído.
[155]
Deram-me dióspiros, emprestaram-me dois livros e ouviram-me com atenção contar uma história de gente morta. Foi um dia bom mas aprendi com os trágicos que a paz é curta e que a hora talha cerce o sabor dos frutos. Por isso os escrevo.
[197]
Os amigos fazem chegar-me grandes sacos de tangerinas. Como-as a olhar a rua e fica a boca a saber-me a invernos soalheiros do sul.
[205]
Estive a varrer a cozinha. Depois vi o meu reflexo no vidro da janela assim de vassoura numa sexta-feira à noite e sorri de tanta simbologia. Nem me atrevi a abrir a janela. Talvez eu voasse – quem sabe – mas os símbolos convém trazê-los à rédea curta.
[263]
Tenho pequenos deslumbramentos à sexta-feira de tarde. Tudo o que eu possa escrever sobre o tempo durante a semana carece de fundamento. O tempo é agora respirá-lo.
[272]
As pessoas foram de Páscoa e eu fui para a esplanada beber um café. Dispus sobre a mesa o livro, o caderno, a esferográfica. Desfiz as voltas da écharpe e desejei que a tarde não acabasse.
[280]
Muito me maçam as pessoas bem dispostinhas e as suas conversas. Cada vez estou mais convencida de que esta gente do pensamento positivo é uma seita perigosa.
[321]
Muitas vezes a presença de outros é uma violência de que estão completamente inocentes.
[330]
O sábado é um pássaro brumoso. (...)
Quando saí para beber café já as pessoas do sábado tinham voltado a casa com os sacos cheios de compras e de alfaces. Havia por isso um belo silêncio. Pude olhar demorada para os agapantos na praceta sem que ruído ou conversa me distraíssem da contemplação. O pássaro do sábado pousou e ficou.