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[Opinião] As Crónicas - António Lobo Antunes

 


Título: As Crónicas

Série: -

Autor: António Lobo Antunes

Data de Leitura: 05/06/2022 ⮞ 12/10/2022

Classificação: 


Sinopse

As crónicas reunidas no presente volume resultam de uma selecção feita a partir de mais de quatrocentos textos publicados pelas Publicações Dom Quixote em cinco volumes independentes entre 1998 e 2013. Inclui também uma seleção de crónicas inéditas em livro.Numa escrita mais intimista do que a dos seus romances, as crónicas de António Lobo Antunes abordam uma vastíssima panóplia de temas que incluem não só a infância, a família, as mulheres, os amigos, os amores e os desamores, a vida e a morte, mas também relatos sobre pessoas anónimas encontradas ocasionalmente, apontamentos de viagem ou sobre pequenos restaurantes de bairro e, como não podia faltar, algumas notas sobre a escrita e os livros.Com esta selecção de quase duas centenas de textos, pretendeu-se oferecer ao leitor uma amostra realmente abrangente da versatilidade e do talento de António Lobo Antunes como cronista.



Minha review no GoodReads

Há uns anos tentei ler ALA. Abri Os Cus de Judas – este início não está a correr bem - e depois do primeiro capítulo fechei-o. Não gostei daquelas primeiras páginas. Desde essa altura os romances do ALA têm ficado como que suspensos à espera que eu tenha vontade de lhes pegar.

Há uns tempos lembrei-me de começar pelas crónicas, um género que, tal como os contos, gosto pelo facto de serem narrativas curtas.

São 173 crónicas escritas entre 1988 e 2013, e abordam várias fases da vida do autor e do país.

Algumas crónicas são hilariantes, outras despedaçaram-me o coração. A escrita é irrepreensível, e se é assim nas crónicas imagino o que será nos romances.

Na crónica Morto Cobrido de Amor diz ALA:

Acabando esta crónica regresso ao livro: ali está ele à minha espera, fazendo negaças. Não tem sorte nenhuma: vou ganhar. Nem que a pele fique pelo caminho vou ganhar. Mudá-lo-ei dúzias de vezes mas ganho.

Também eu regressarei ao livro, e também eu ganharei.


******

"não sou um senhor de idade que conservou o coração menino. Sou um menino cujo envelope se gastou."

"marchávamos a tiritar,em fila Indiana,de nariz roxo de frio,até à praia em que distinguiam os igloos de 1 ou 2 toldos imprecisos,icebergues à deriva e os meninos-pinguins de uma colónia de férias guinchando como leitões a esbravejarem de susto,que banheiros-esquimós agarravam à força para os mergulharem de golpe,num clima de aurora boreal,entre calhaus de gelo e esqueletos de exploradores polares.[praia das maçãs]"

"porque durante séculos havia sempre um bebé aos gritos. A origem destes bebés era aliás um mistério para mim e a história de Paris e das cegonhas possuía demasiadas incongruências para eu acreditar nela até porque na viagem de Paris a Benfica com as crianças no bico (Paris era quase tão longe como de Lisboa à Praia das Maçãs) algum caçador daria um tiro no bicho, incomodado com a berraria que os meus irmãos faziam."


"Normalmente é no terceiro minuto a partir do crepúsculo que o ar da praia é mais frio do que a água. Não no segundo nem no quarto: no terceiro e durante onze segundos, o que requer discernimento, atenção e paciência.(...) mal o terceiro minuto começa, tira-se a palma do queixo para que o ar poise nela e aí está: pega-se no ar da praia, mete-se no bolso e leva-se para casa sem deixar entornar."


"Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que os meus livros não são para ser lidos no sentido em que usualmente se chama ler: a única forma parece-me
de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença."


"Chega uma altura em que a morte é uma pessoa de família, uma parente não muito próxima que se convida quando há um lugar a mais na mesa; vemo-la, na ponta da toalha, modesta, apagada, a comer connosco, a sorrir quando nos rimos, a concordar de leve, a ir-se embora antes dos outros
— não se incomodem, não se incomodem
e ao chegarmos ao elevador não a encontramos já, tentamos lembrar-nos do seu nome e esquecemo-la"

"Gosto deste sítio de pequenos comércios, desta espécie de aldeia, engastada no centro de Lisboa, que à noite se enche de travestis mirabolantes a mostrarem o rabo a pretendentes tímidos, gosto da loja de candeeiros, da loja de electrodomésticos, da loja dos chineses cheia de inutilidades delicadas (...) Só não gosto dos pombos mas consolo-me imaginando o que seria do automóvel se os elefantes voassem."

 "Um dos intelectuais reconheceu-me, cochichou com os colegas e fitaram-me à uma, sobre dúzias de chávenas de café. Apagavam cigarros apressados nas borras como se em cada cigarro um argumento definitivo, vital.
Horrorizou-me a hipótese de ser lido por camelos assim, decididos, tremendos."

"Agora é manhã e está sol. Se eu fosse Deus parava o sol sobre Lisboa, escreveu Fernando Assis Pacheco. Tão linda a minha cidade com sol, tão lindo o meu país com sol. Vem aí o outono, o inverno, o cinzento dos dias que desbota para nós. Não me apetece nada o frio, a chuva. Se eu fosse Deus parava o sol sobre Lisboa. Sinto-o na rua, mesmo com estes vidros baços."

"Amanhã na batalha pensa em mim: um título do meu amigo Javier Marías. Hoje na batalha penso em vocês, não deixo de pensar em vocês. Somos tantos, cada um de nós é tantos."

"— As mulheres têm fios desligados e um outro elucidou-me q eram como os telefones:avariam-se sem que se entenda a razão,emudecem,ñ funcionam e o remédio é bater c/ o aparelho na mesa para q comecem a trabalhar outra vez.
ñ tenho nada contra os homens:até gosto de alguns.Dos meus amigos.De Schubert.De Ovídio.De Horácio, de Virgílio.De Rui Costa...
ñ tenho nada contra os homens a não no que se refere às mulheres."

"Às vezes parece-me que sou uma nuvem com raízes, sempre a partir e a ficar. Não abandono os sítios de que me fui embora, coloquei a alma, escondida, sob cada objecto."

"Uma ocasião uma jornalista perguntou a Vinicius de Moraes se tinha medo da morte. O poeta respondeu com um sorriso
– Não, minha filha. Tenho saudades da vida.
De tempos a tempos esta frase de Vinicius regressa-me à ideia. Penso: de que terei saudades, eu? Maça-me morrer porque se fica defunto muito tempo."

"Considerava-me imortal; soube, com horrível violência, que o não era. Ter passado o que passei alterou-me por completo a existência e suponho que modificou também o que produzo. Os médicos não tratam: tornam a dar-nos a eternidade sob forma de um infinito futuro, isto é uma porção limitada de dias que apesar de tudo acreditamos, contra a evidência, não terminar nunca. Agora tenho essa eternidade."

"(...) como sou homem não tenho a delicadeza nem a capacidade de decifrar mistérios que as mulheres entendem sem palavras, encontram sem procurar, conhecem a linguagem do silêncio, relacionam-se com o por dentro das coisas, explicam-nos, com um bater de pálpebras, o segredo do mundo, conseguem deitar-se dentro da própria alma e adormecer acordadas."