Título: Os Anos
Série: -
Autor: Annie Ernaux
Data de Leitura: 05/02/2023 ⮞ 15/02/2023
Classificação: ⭐⭐⭐⭐⭐
Sinopse
Estendendo-se por um período que vai de 1941 a 2006, em Os Anos conta-se uma história que é simultaneamente coletiva e pessoal, transversal e intimista, de sessenta anos da vida de um país e da vida de uma mulher. Através de pequenos fragmentos narrativos, por meio da relação entre fotografias, canções, filmes, objetos ou eventos da história recente, mais do que uma desconcertante autobiografia, Annie Ernaux constrói uma recordação de um «nós», num relato sobre o que fica quando o tempo passa: «Tudo se apagará num segundo [...] Nem eu nem mim. A língua continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.» Galardoado com diversas distinções, entre as quais o Prémio Marguerite Duras 2008, em França, o Prémio Strega 2016, em Itália, e a seleção para o Prémio Man Booker Internacional de 2019, este livro confirmou Annie Ernaux como uma das mais importantes vozes da literatura francesa deste século.
Minha review no GoodReads
Annie Ernaux– Prémio Nobel da Literatura, 2022
"pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal "
Annie Ernaux, nasceu em Lillebonne, na Normandia, em 1940, e é uma das vozes mais importantes da literatura francesa. Os Anos foi vencedor do Prémio Marguerite Duras.
Uma auto-sociobiografia que nos mostra que acima de um eu há sempre um nós.
(…) descobrir numa memória individual a memória da memória coletiva, ser capaz de transmitir a dimensão vivida da História.
É através de fotografias (a primeira de 1941 e a última de 2006), que têm um papel central na narrativa, que Annie Ernaux enquadra lembranças, épocas e momentos da sua vida pessoal. É uma conversa intimista em que a história se vai entrelaçando com os costumes, ideais e pensamentos que marcaram esse período. São as lembranças da sua vida pessoal que se fundem com a história da França, da Europa e do Mundo, mas também com a nossa porque em algum momento do livro partilhamos memórias, eventos e experiências.
Para além das narrativas, a memória transmitia-se pelos modos de andar, sentar, falar e rir, chamar alguém na rua, comer, pegar em objetos, gestos que passavam de corpo em corpo ao longo dos tempos através dos campos, tanto em França como no resto da Europa. Uma herança que não era visível nas fotografias e que, para além das diferenças individuais, da distância entre a bondade de uns e a maldade de outros, unia os membros da família, os habitantes da mesma região e todos aqueles de quem se dizia são gente como nós. Um reportório de hábitos, uma soma de gestos formados por infâncias passadas no campo, por adolescências nas aprendizagens, precedidas por outras infâncias, até que tudo se perca no esquecimento: (…)
Annie Ernaux conta-nos sobre as grandes convulsões sociais e políticas francesas, as grandes manifestações, do Maio de 68 e de 81, as greves gerais, as personalidades que desapareceram, os objectos da moda, o aparecimento da TV, do vídeo, dos CD’s, dos telemóveis, a importância das marcas e a publicidade, as tendências musicais, o fim da URSS, a queda do muro de Berlim e das Torres Gémeas, a primeira guerra do Golfo, o advento da tecnologia, etc., etc. Algumas destas referências fazem-nos sorrir outras entristecem-nos, mas acima de tudo fazem-nos lamentar a passagem do tempo.
Ficávamos maravilhados com as invenções que acabavam com séculos de gestos e esforços, inauguravam um tempo em que, diziam as pessoas, no futuro já não teríamos nada para fazer. Éramos depreciativos: a máquina de lavar era acusada de estragar os tecidos, a televisão de lesionar os olhos e de nos fazer ir para a cama a horas indevidas. Controlávamos e invejávamos na casa dos vizinhos a posse destes sinais do progresso, marcas de superioridade social. Na cidade, os rapazes importantes exibiam a sua Vespa e rodopiavam em volta das raparigas. Orgulhosos nos seus assentos inclinados lá iam com uma delas de lenço atado debaixo do queixo, que os abraçava por detrás para não cair. O nosso desejo seria crescer três anos num só quando os víamos afastarem-se como um petardo ao fundo da rua.
O livro é curto, tem apenas 200 páginas, a escrita é simples e afiadíssima. É daqueles livros que fica cheio de sublinhados e notas, e no fim parece que lemos um calhamaço.
a nossa memória está fora de nós, num sopro orvalhado do tempo
Tudo se apagará num segundo. O dicionário acumulado desde o berço até ao leito de morte irá desaparecer. Depois, o silêncio e nenhuma palavra para o dizer. Da boca aberta nada sairá. Nem eu nem mim. A língua continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.
A distância que separa o passado do presente mede-se, talvez, pela luz que se difunde pelo chão entre as sombras, deslizando sobre os rostos, desenhando as pregas de um vestido, pela claridade crepuscular de uma fotografia a preto e branco, seja qual for a hora a que se posou para ela.
E não se envelhecia. Nenhuma das coisas à nossa volta durava tanto que pudesse ascender à condição de envelhecimento, eram substituídas, renovadas o mais depressa possível. A memória não tinha tempo para as associar a momentos da existência.
Quando, à noite, erguíamos os olhos, a Lua brilhava fixamente sobre milhões de indivíduos, sobre um mundo do qual vislumbrávamos a vastidão e o bulício. A consciência dilatava-se através da infinidade do espaço planetário, até outras galáxias. O infinito deixava de ser imaginário. Razão pela qual era inconcebível dizer-se que um dia iríamos morrer.